A queimada – Ítalo Felipe

Veio o fogo, e depois a fumaça cinza que cobria todo o céu azul, após toda aquela fumaça caiu uma chuva revelando-se espessa.
Então o homem esqueceu da sua casa e caminhou lentamente por aquele lugar sem vida. As cinzas que algum dia já foram verdes sujavam o seu sapato e as bordas da sua calça esfarrapada.
Encostou-se em um tronco cinzento com cheiro de carvão. Ali perto, as pessoas viviam as suas vidas sem se preocuparem com o problema a sua volta. Ele fechou os olhos e respirou fundo, era como se ele pudesse ouvir os pássaros e os grilos que algum dia já viveram ali, mas era só impressão, tudo o que restara era apenas alguns matos, queimados e espalhados pelo chão.
O homem tirou uma semente do seu bolso, ajoelhou-se sobre o chão úmido e cavou um buraco com as próprias mãos para enterrar aquela semente, e pouco a pouco ele foi sentindo uma paz naquele começo de vida, naquele lugar onde não havia mais nada.

Escrever pelo desapego – Ana Schuch

Escrever é arte das palavras e essa é em suma a definição. Trata-se de mergulhar as pessoas na sua realidade ou sublimar a realidade em ficções para trazer ao mundo alguma verdade, algo que nos inquieta. De qualquer maneira, ainda é um universo particular, a mente do escritor,  algo só dele e que só ele pode proporcionar.  Nele há um furacão de palavras que passam atormentando pedindo para sair,  essa ventania é estimulante e inevitável, viva de uma natureza sublime, poderosa a ponto de fazer com que se perceba como um vulcão, prestes a erupção, onde a lava dança e ameaça queimar se nenhuma atitude for tomada. Cabe a nós escritores organizar, tornar possível que algo tão inóspito seja compreendido,  na chegada do ponto final tem de a ver um efeito em quem leu, a mensagem tem que ser dita, e se possível instigante o suficiente para não ser óbvia.
Essa busca do escritor pelo significado e pelo significante, tem que ter uma função também nas outras mentes ou emoções, e isso só pode ocorrer com a chegada do ponto final, por isso acho que é tão desafiante para alguém que ama essa arte, o maldito fechamento.  É esse o meu desafio, por que me sinto reticências, não gosto dos limites, não gosto de dizer: “então é isso e aquilo, entenda se quiser, estou indo embora pois acho que não tem mais nada que eu possa fazer aqui”. Eu sempre acho que tem alguma coisa que ainda pode ser dita, que ainda pode ser melhorada dentro de cada contexto, e com essa brincadeira se vão anos com muitos quase sucessos, e digo isso sem lamentos, sei que essa é uma batalha que eu tenho que vencer, algo que tenho que aprender a fazer, conhecer aquele “chega!”, o “desisto!” que na verdade é “estou pronta pra outra!”.
Estou falando de textos, por que estudo isso, amo isso e na verdade preciso disso, é o lugar onde eu de fato posso falar, sem interrupções, e deixando tudo da maneira que eu quero que fique, da maneira mais integra que eu puder, que eu posso consertar aquele “e” e aquele “mas” que na vida real escapam. Aquilo que a musica podem fazer com o meu coração, a escrita pode fazer com os meus enredos. É onde posso pontuar aquilo que não quiseram ouvir, que não sabem o valor que tinha quando eu quis dizer, mas que ainda assim merece ser dito. Acho que todos compreendem isso, né? Por conta desses focos e destes detalhes o ser humano inventou a arte, e os sensíveis se tornaram artistas.
Mas aqui estou eu, sem o meu ponto final, com alguns parágrafos cheios de conclusões, mas sem saber o lugar do fim. Como eu vou triunfar se eu não tenho uma linha de chegada? Se isso pra mim é um discurso que se estende ao infinito?   Creio que se fosse um mero trabalho artesanal com a linguagem ou uma composição cênica eu começaria pelos finais, mas não é, é a minha verdade, é um pedaço de mim e eu flutuo sob o texto, de alguma maneira é atemporal e “estou aqui”, enquanto o tempo me lembra que tenho que ir e me deixar. No final cada fim é uma morte, uma folha que cai e deixa espaço pra outra vir: um desapego.

Tédio – Vinicius Luft Mendes

São 17:12 de uma segunda-feira, já nem sei qual, já que todos os dias são iguais quando a gente tá de férias, é como se fosse sempre um sábado qualquer. Dia 21, acabei de ver aqui no celular. Conectei o notebook na TV, assim consigo ouvir mais alto as músicas que coloco no Spotify: hoje a trilha sonora fica sob a responsabilidade de Chet Faker e Nick Murphy, que descobri hoje mesmo são a mesma pessoa. Eis que ele canta o trecho “My hapiness; some kind of fucked up mess” e repentinamente me identifico com a frase, já que estou com a mesma roupa que acordei, não tomo banho a mais de um dia, estou sozinho em casa e tomando a segunda Heineken long neck de um total de três que sobraram de um pack que comprei para tomar junto com meu irmão antes do show do Humberto Gessinger no sábado (ele acabou não bebendo nenhuma e deixou tudo pra mim).

Acho que não sei lidar muito bem com meu tempo livre, já que faz pouco eu estava pesquisando “list of hobbies” no Google para ter alguma ideia de algo pra fazer, fiz isso porque já cansei de atualizar o feed do facebook e não aguento mais jogar videogame. Nesse meio tempo a Manu veio falar comigo no whats, ela foi comigo no show sábado. A Gabi veio falar também, disse que comprou um brownie. Ta cada vez mais difícil não confundir o nome das duas, mas é porque eu sou ruim com nomes mesmo, não porque são nomes parecidos, até porque a única letra em comum nos apelidos é o “a”, e se uma letra fosse suficiente para nomes serem parecidos “Chet” seria parecido com “Nick”, o que obviamente não ocorre.

A questão é que quase todos os últimos dias tem sido assim, uma grande e interminável batalha em busca de achar algo pra fazer. Eu tinha esquecido que esse era o ponto negativo das férias, tava tão empolgado antes, quase que afoito, deseperado por uma folga. Cair no tédio é terrível. Esses dias mesmo tentei marcar um futebol com o pessoal da faculdade, mas ninguém podia por causa de estágios e não sei mais o que. Começei a terceira Heineken. Será que mais alguém passa pela mesma situação? Claro que sim, Vinicius. Pergunta besta. Olha quantas pessoas tem no mundo, a probabilidade de mais ninguém ficar entediado nas férias é zero. Sim, concordo, mas eu não to falando só de ficar entediado, mas sim de chegar no ponto de desespero em que a pessoa começa a procurar listas de hobbies na internet, tentar marcar um futebol com três grupos do whatsapp diferentes, tomar cerveja no meio da tarde de uma segunda-feira, atualizar o feed do facebook a cada 13 minutos, dar um passeio demorado na wikipedia, contar os tijolos da parede da casa do vizinho da frente, ir no banheiro só pra olhar a própria barba no espelho e ver se ela já cresceu alguma coisa nos últimos três dias, esse tipo de coisa.

Bom, acho que a pergunta ficou um pouco mais restrita, mas com certeza a probabilidade ainda é baixa. Mas é foda perceber que há alguns anos atrás eu não tinha barba, nem vizinho da frente, nem wikipedia, nem facebook, nem cerveja, nem whatsapp, nem futebol, nem Spotify, nem Gabriela, nem Manuela, e não sentia o que sinto agora. Ou sentia? Nem lembro mais… talvez. Talvez o problema seja comigo mesmo, talvez não seja culpa do resto do mundo. Talvez tudo que eu precise é parar de reclamar comigo mesmo através de um texto, tomar vergonha na cara, arrumar meu quarto, lavar a louça do almoço, planejar o meu próximo semestre, ter iniciativa para organizar uma festa surpresa pra algum amigo que faça aniversário nesse mês, montar um excel para controlar as finanças da minha família, sei lá. Talvez eu só precise dar o primeiro passo…

Talvez. Ou talvez eu possa trocar a musica pra Milky Chance, fazer pipoca, abrir o Youtube de novo e olhar uns vídeos dos melhores momentos do Micheal Jordan, ver se acho alguma outra long neck perdida pela casa, atualizar o feed do face, talvez até contar as telhas do vizinho da frente pra poder completar a informação sobre o número de tijolos (são 312). É, parece melhor.

É triste o modo como as coisas se vão – Renan Matos

É triste o modo como as coisas se vão ou se mantém sem significância. Eu costumava morar onde hoje existe uma loja de carros. A única coisa que ficou da minha antiga casa verde foi o maior ipê do mundo, a prefeitura não permitiu cortar. E ninguém sabe o que se passou naquele mesmo canto onde hoje eles assinam os contratos de venda. Faz alguns anos que não vejo aquele ipê florir. A cidade se resume nisso, nos caminhos que fazemos e que deixamos de fazer. Talvez seja assim também a vida. Eu passei perto daquela casa hoje. Lá uma outra família me amou, e uma mulher também. Aprendi a andar de bicicleta. Fui longe e não voltei. E todos os carros que percorrem esse mesmo caminho não sabem de nada. Nem a mulher que costumava me amar. Da mesma forma não se lembram as pessoas das mesmas coisas que me lembro indo em direção ao nosso antigo apartamento. O cachorro que vigiava o prédio em construção está velho, e eu também. Eu passei por lá ontem e chorei. Nosso ex-apartamento está a venda. Trocaram a nossa lua por uma lâmpada de LED. E a conta não vem mais no meu nome.

Poderia ser mais fácil – Isadora Hernandez

         Poderia ser mais fácil falar apenas “cheiro do mar”, “cheiro da chuva”, mas sempre parece errado falar as coisas como elas são. É necessário dizer, com a boca cheia de presunção, “aquele cheiro da maresia”, “adoro o cheiro que a terra faz quando a temperatura e questões físicas que desconheço anunciam que vai chover”. Pareço burra quando apenas falo cheiro da chuva, cheiro de mar, dor de amor.

         É necessário definir tudo, pois se eu apenas falar o que sinto ninguém achará suficientemente digna. Eu não seria esperta o suficiente, capaz de aguentar as tantas relações superficiais. As pessoas me querem esperta e racional, se eu disser que estou “doente de amor” vão me olhar com um sorriso cínico, daqueles bem tortos e amarelados e dizer  “jamais é dor de amor, minha querida, você apenas está apaixonada, você é jovem”.

         Se os sentimentos fossem tão fáceis como distorcer palavras e emoções, eu poderia facilmente trocar a dor de amor pelo cheiro da chuva, poderia ser racional apenas para fazer crianças rirem, olhar para alguém que fala assim, tão difícil, e jogar a água do mar sem o tal “cheiro de maresia”! Poderia até, fingir para mim mesma que a pior dor de todas não é, na verdade, a dor de crescer.

ENTRE HISTÓRIAS E MUNDOS – Gabriela Fantinel

Vontade de escrever sobre o Amor…
Pobre da Poeta! É só para disfarçar.
Em versos e folhas misteriosas da vida, impossível da caneta decifrar.
Quem sabe lá entre estranhos universos,
Onde o longe se torna perto,
onde os relógios descansam e tiram férias de contar as horas…
Minha busca perdida que não sei ao certo onde quero chegar.
Quero tirar férias também, dessa repugnante realidade,
quero pegar na mão da pessoa que eu amo e entrar em uma história,
em um quadro pintado, em uma grande ilusão…
Até que a arte irá se virar para nós e dizer
”Que procuras, solitários e tristes amantes?
Vamos andando entre as páginas e mundos, Vamos andando…Nada mais existe!…”

O rato e o pavão – Vitor Berg

O pavão desfilava pela rua, em pleno centro da capital, quando avistou, embaixo do viaduto e cercado pelo transtorno do tráfego, o rato, que tremia e esgotava suas energias empurrando a base da imóvel construção de concreto.
Ô, rato, ele chamou, pera aí.
O pequenino, curioso, parou pra observar a ave, que cruzou pomposamente a faixa de segurança e se aproximou.
Meu, é o seguinte, todo mundo sabe que a tua raça é apaixonada pela estupidez,
mas, por curiosidade, o que tu tá tentando fazer aí?
Mas não é óbvio que estou derrubando esse viaduto? perguntou o rato, empolgado.
O pavão gargalhou e chegou a rolar pelo chão imundo, mas vendo que o rato o observava sério e com interesse, se recompôs, com alguma dificuldade.
Mas por que tá fazendo isso?
Ora, talvez porque a minha vontade seja essa, o rato respondeu, fleumático, se
esforçando para tolerar a ave e retornando pacificamente à sua missão.
O pavão, que até então tinha conservado certo deboche, se calou por alguns minutos e passou a observar o rato contrair o rosto e suar, tamanha a força que depositava nas mãozinhas contra o concreto. Os carros passavam velozes e intermináveis em torno dos dois.
Rato, o pavão interrompeu, mas por que tu segue fazendo algo que não vai resultar em nada? Não existe vontade que não se domine. Por que tu não pensa um pouco?
Ora, talvez porque a minha vontade seja diametralmente oposta a isso. Hoje, pela
manhã, fui dominado por um súbito impulso de derrubar, com a força dos meus próprios braços, o primeiro viaduto que eu cruzasse. Deixei mulher e filhos aguardando, ansiosos, pelo meu retorno, no triunfo ou no fracasso.
Mas uma vez sequer te perguntou a razão pra fazer isso?
Não. Assim que me perguntasse, não acharia justificativa e acabaria não fazendo.
Agora, pelo menos, tento. E, acredite, a força que empenho para não ter um orgasmo é enorme e incontornável, mesmo este viaduto estando tão longe de cair, meu amigo, e o rato voltou a empurrar o concreto.
O pavão se ofendeu com a ousadia e, interrompendo o rato de novo, replicou altivo:
Pois saiba que não faço amizade com gente tola; gente que, sem pensar, se dispõe a fazer coisas vãs.
Então o rato vociferou endemoniado:
Coisas vãs? E tu, impertinente, o que faz aqui? Desde que tu cruzou a rua, tive a
certeza de que seria muito melhor que tu metesse esse pescoço ridículo, típico da tua espécie, sob a roda de um dos carros, que aqui passam aos milhares, antes de vir interromper alguém forte. Me pergunto como não te envergonhas de não ser mais que um empecilho. Sim, um empecilho que se mete indesejavelmente no caminho dos outros. Entretanto, teu próprio caminho tu não sabe. Quem tem que pensar aqui é tu, que não sabes sequer a causa de vir me incomodar. Vai-te embora, palhaço, que tu estás tão sem certezas quanto eu.

Praça XV Nº 16 – João de Deus Vieira Alves

Todo mês de março, após a ressaca das férias, quando a vida começa lentamente a tomar conta de nós e o ano finalmente parece que vai deslanchar, uma das tarefas que não se pode abrir mão, para quem tem filhos em idade escolar.É a romaria de pais, levando a tiracolo as famigeradas listas de materiais a serem comprados, a fim de encarar o ano letivo.

Munidos de paciência, tempo, pouco dinheiro, fomos cumprir a gincana de: Pergunta daqui? Especula dali? Pechincha acolá?

Após semanas de intensa aventura, por livrarias, feiras e a grande novidade do momento: As lojas de preço único. Finalmente, quando se pensa que tudo está resolvido…

A pergunta vem, rascante, seca e implacável, no intervalo do Jornal Nacional, no exato momento do ajeitar da erva na cuia.
__ E a mochila, Pai?

Mochila:  serve para causar deslocamento na coluna,carregar livros, cadernos, mini-games, merenda; no caso dos adolescentes o inseparável telefone celular ( que nunca tem cartão e/ou está na caixa postal,e as vezes como certos centroavantes “fora da área de cobertura”), e nos intervalos dos recreios, recheada de jornais serve também de bola.

Isto posto, refeitos do susto , os calos e a bolhas dos pés, já sofrendo de antemão, vamos dormir e ter sonhos coloridos com mochilas, merendeiras, malas e todo o tipo de bagageiro.

Após um dia de trabalho, a caminho de casa, chegamos numa banca de camelôs, com artigos importados, bugigangas “paraguayas”, onde estavam expostas diversas mochilas.

Fomos atendidos por um casal jovem, atenciosos e solícitos, e uma graça de criança que estava no carinho, que chamava atenção pelo intenso azul de seus olhos e os cabelos louros cacheados.

Mas, como filho que estuda pela manhã, e mora dentro da televisão à tarde, se não for mochila do “POWER RANGERS”, não serve.

Voltamos a banca para trocar a mochila. Só que desta vez ao invés do simpático casal com seu lindo bebê, quem nos atende, é um senhor grisalho. Diante da pergunta inevitável, por eles, o surpreso vendedor, nos argumentou que faria a troca da mercadoria, e era proprietário daquela banca naquele local a mais de dez anos, e não conhecia nenhum casal conforme a descrição feita por nós, no que foi corroborado pelo demais proprietários de bancas da rua.

Ainda, sestrosos e incrédulos, fomos abordados por um vendedor de cahorro-quente, que ouvia a conversa:

__ Olha, senhor, um casal com estas características, teve uma banca aqui, há mais ou menos quinze anos, mas foram mortos num assalto junto com seu filhinho.
Pesquisando, nos arquivos da Policia , descobri num jornal de quinze anos atrás, com a seguinte manchete:
CRIME NA PRAÇA
“Casal de artesões e barbaramente assassinado, junto com seu filho.

Nas fotos que ilustravam a reportagem, estava o simpático casal, que nos vendera a mochila e seu filho  tinha o sorriso mais radiante, que nunca.

A bolha – Ozeias Alves

Foi achando que ainda não havia acordado, que ainda estava preso em um sonho que Felipe, ao se olhar no espelho e não ver o seu reflexo, passou o fio da navalha no dedo indicador da mão esquerda. Mas ao invés de despertar de sobressalto em seu quarto, Felipe permaneceu de pé diante do espelho, o sangue escorrendo de seu dedo e se misturando a água que descia em espiral pelo ralo da pia. Apavorado, deixou a navalha cair no chão quando, ao constatar que já estava acordado, que aquele momento era de fato real; ele se olhou mais uma vez no espelho e não viu nada além do creme de barbear, como se a espuma com um suave perfume de rosas, flutuasse num molde de seu rosto invisível.

“Eu só posso estar ficando louco”, pensou enquanto levava a mão esquerda de um lado a outro em frente ao espelho que também não a refletia; Felipe via apenas o sangue que escorria pelo seu dedo indicador, uma gota se desprendendo da pequena serpente de sangue em seu dedo, desaparecendo em espiral pelo ralo.Se não era um sonho, então o que podia ser? Na vida real, ele sabia, as pessoas não ficavam invisíveis. Era fisicamente impossível. Prova disso era que aquela mão que o espelho não refletia estava ali diante de seus olhos. Os pés descalços, a barriga, o sexo, o corpo todo visível aos seus olhos, mas invisíveis ao espelho.

Felipe enrolou o dedo ferido com o papel higiênico, lavou o rosto e em seguida correu até o quarto, parando diante do espelho na parede e constando, com um assombro ainda maior, que tudo o que se refletia ali, além daquele pedaço flutuante de papel higiênicio já ensanguentado, era a sua enorme cama desarrumada que ocupava quase todo o quarto, o criado mudo com o abajur cuja lâmpada havia queimado na noite anterior, durante a leitura de um romance após despertar subitamente de um pesadelo e não conseguir mais dormir até ás quatro da manhã, quando finalmente as pálpebras pesaram e o sono o derrubou.O pesadelo, agora Felipe se lembrava, era que ele andava pela cidade a noite e que o céu estava muito escuro, sem estrelas ou lua, e que as luzes da cidade mal iluminavam as ruas, e as pessoas eram nada mais que vultos. De repente seus pés começaram a afundar na calçada como se o concreto fosse movediço. Ele começou a gritar por socorro, mas as pessoas não podiam ouví-lo. Iam e vinham, passando por ele, ignorando-o, enquanto ele afundava mais e mais. Quando já estava com a calçada até o pescoço, imóvel e sem fôlego para gritar, acordou.

Quando Felipe estava no banheiro ainda tentando entender por que ele não podia se ver refletido, pensou que talvez o espelho estivesse com defeito. Nunca ouvira falar na vida sobre espelhos defeituosos que deixavam de refletir pessoas, assim como também nunca ouvira falar sobre muitas coisas que podiam muito bem existir e acontecer. A ideia de um espelho defeituoso que deixava de refletir pessoas era menos absurda que pessoas ficarem invisíveis.

Para Felipe, havia diferença entre ideia absurda, menos absurda e ideia possível. Enquanto absurdo seria pensar que as pessoas podiam ficar invisíveis ou perderem seus reflexos, menos absurdo seria pensar que espelhos dão defeitos e que, dependendo do defeito, o espelho deixa de refletir as pessoas; já a possível… bem, a ideia possível é quando se pensa em algo que não confronta com a realidade e a lógica ou que, quando confronta, pode-se provar através da transcendência da teoria, a prática. Se ao se olhar no espelho do quarto Felipe pudesse ver o seu reflexo, a ideia menos absurda de que espelhos podem apresentar defeitos que se manifestam em forma da irreflexão humana, se tornaria possível. E foi pensando nisso que ele correu em direção ao quarto tentando provar para si que espelhos dão defeitos e que de maneira alguma ele havia ficado invisível.

O papel higiênico ensanguentado envolvendo o seu dedo, a enorme e desarrumada cama que ocupava quase todo o quarto, o abajur com a lâmpada queimada e o livro sobre o criado mudo: Felipe continuava invisível diante do espelho. Como aquilo era possivel? Como explicar o fato de uma pessoa não poder se ver refletida no espelho, mas ver a si com os próprios olhos- os espelhos naturais que, juntos, refletem uma coisa só, conhecidos pelos poetas como janelas da alma? Por mais que Felipe buscasse alguma explicação, a cabeça trabalhando em ideias que se contradiziam, nenhuma solução lhe chegava. Havia uma parte de si que acreditava que aquele momento era real, que o corte em seu dedo provocado pela navalha, que o chão sob seus pés eram reais; mas havia outra parte que dizia: você ainda não acordou, Felipe, você ainda está sonhando, o despertador ainda não disparou o alarme. De fato, Felipe não se lembrava de ter sido acordado pelo despertador, mas sim pela sensação de estar caindo. “Você está sonhando, você está sonhando, você está sonhando”, dizia mentalmente para si enquanto, contraditoriamente, também dizia: não, você já acordou, o despertador falhou, isso é real, mas como isso pode ser possível? Isso ele não sabia.
Ás vezes, quando Felipe percebia que estava sonhando, ele acordava. Era simples, bastava querer. Mas quando pensou que ainda pudesse estar sonhando, ao desejar acordar como sempre fazia, não acordou. Não acordou porque já estava acordado, porque aquele momento nada mais era do que a real.

“Se isso for mesmo real, serei eu também invisível aos outros espelhos, aos outros olhos?”, perguntou-se, sentando-se na cama, massageando as têmporas que agora latejavam. A cabeça parecia a ponto de pifar. O turbilhão de ideias, uma mais absurda que a outra- porque apeans ideias absurdas poderiam explicar aquele absurdo maior- sobrecarregavam a sua mente acostumada a pensar o simples, a somar, subtrair, dividir, responder o mais sensato possível as perguntas, umas simples, outras razoavelmente complexas, a resolver as questões impostas no dia a dia. Tudo era natural e simples. Ou todas as coisas que antecederam aquele momente pareceram muito mais naturais e simples diante daquela questão tão complexa quanto absurda: como era possível um homem acordar sem o seu reflexo?

Mas cerca de cinquenta minutos depois, para seu espanto ainda maior, como se o fato da irreflexão no espelho não bastasse, caminhando pela calçada, esbarrando-se e desviando das pessoas que sequer pareciam notá-lo- e quanto a esse tipo de invisibilidade já havia se acostumado há muito tempo- Felipe reparou que também não possuía mais a sua sombra. Seguia para o trabalho, como fazia durante os cinco dias da semana, como se aquele fosse um dia como outro qualquer. Não poderia, de forma alguma, ligar para o escritório e dizer:
-Aqui quem fala é o Felipe Medeiros. Diga que hoje não posso trabalhar, porque eu perdi o meu reflexo. Estou ficando invisível e tirarei um dia para descanso.
Poderia fingir um mal estar, uma dor de cabeça, diarreia, febre, uma consulta ao dentista. Mas e depois? Como explciaria a sua ausência nos próximos dias? Não há dor de cabeça, de dente, febre ou diarreia que justifiquem semanas ou quem sabe meses de ausência no trabalho. Naquela manhã, ele imaginava, muitas pessoas acordaram com algum tipo de problema na vida, mas seja o problema qual fosse, ele não deveria nem podia ser maior que a obrigação profissional. O profissional e o pessoal são dois povos que não se bicam, mas que convivem pacificamente até um invadir o território do outro. Não era possível que em meio àquela gente toda que ia e vinha pela calçada se esbarrando ou desviando dele, só ele tivesse um grande problema. Em seu escritório mesmo devia haver alguém passando por um momento difícil, mas que mesmo assim se arrastava até lá para cumprir com as suas obrigações. O funcionamento do mundo precisava deles e o mundo não esperava que eles estivessem contentes ou bem dispostos para fazer o que devia ser feito. Felipe achava que, seja qual fosse o problema, independente da gravidade, eles nunca deviam ser medidos ou comparados. Problemas são problemas e ponto, e cada um lidava da maneira que podia.
Por isso Felipe caminhava apressado pela calçada, ora esbarrando, ora desviando das pessoas que pareciam sequer notá-lo, rumo ao trabalho no escritório. Pilhas e mais pilhas de papeis já deviam estar sobre a sua mesa, um problema mais urgente que outro, embora naquele momento nada lhe parecesse mais urgente que encontrar uma resposta para aquele fenômeno surreal: a irreflexão da sua imagem diante do espelho e a ausência da sua sombra.

Na escola, se Felipe se lembrava bem, a sombra nada mais era do que a ausência de luz provocada por uma berreira- e no seu caso, o corpo. Não havendo sombra, significava que não havia barreira, ou seja, o seu corpo, e se não há corpo, o que há? Se não há corpo, significa que não há pernas, e eles as sente firmes, os pés nos desconfortáveis sapatos, as mãos, os dedos, aquela ferida provocada pela navalha, os olhos que enxergam aquele gente com a mesma pressa e o mesmo ar de cansaço, a boca, os lábios que vão ressecando sob aquele sol, o estômago se revirando, a cabeça que ainda lateja- meu Deus, que diabos está acontecendo comigo? Sentiu-se tonto e, aproveitando que estava a apenas alguns metros do ponto de ônibus, adintou os passos e se sentou naquele banco quase sempre ocupado por pessoas que pareciam ainda não ter despertado- costumava sentir pena daquelas pessoas tão jovens que traziam consigo aquele ar de quem carregava o peso do mundo.

O ônibus passaria dali a dez ou quinze minutos, tempo suficiente para respirar fundo e se recompor, odiava a ideia de ter que explicar aos colegas de trabalho por que aquela cor tão pálida, o semblante tão infeliz- se tinha uma coisa que lhe irritava era aquela cordialidade forjada, a falsa preocupação a respeito do outro, as mesmas perguntas imbecis como se as respostas fossem de extrema relevância para as suas vidas.

Baixou os olhos e onde deveria ver a sua sombra não viu nada além de rachaduras e um chiclete esmagado por dezenas de sapatos impregnado na calçada. De repente, mais do que confuso e descrente da própria realidade, sentiu-se triste. Sentiu-se triste, porque é sempre triste ver um vazio ou ausência daquilo que ele julgava sempre pertencer a ele, porque é sempre uma miséria para qualquer homem o abandono de sua própria sombra, o seu próprio reflexo no espelho- como será a vida para um homem que não poderá nunca mais se encarar no espelho, a beleza de si mesmo como uma descoberta, mas sem o risco de se afogar como Narciso? Que nem todos somos belos é um fato, mas que também a feiura de certa forma, se não beleza, tem a sua importância, que é a de firmar o belo como belo, separando uma coisa da outra como a respiração separa o que está morto do que está vivo, também o é.

O que lhe restaria, não havendo sombra nem imagem? Não fossem os sentidos, duvidaria até de que não havia mais um corpo, teria certeza de que agora no mundo era apenas um espectro vagando, um fantasma em seu purgatório particular, transitando por aqueles incapazes de vê-lo e ouví-lo, pior, compreendê-lo. Sentia-se tão indisposto, tão incapaz até mesmo de subir os degraus daquele ônibus que logo chegaria que pensou em levantar, dar meia volta e ir para casa telefonar para o serviço e dar qualquer desculpa, tirar a roupa, entrar outra vez sob o chuveiro e depois deitar, ficar ali na cama por horas, talvez dias ou quem sabe anos, todos os dias uma nova desculpa para não ir ao trabalho até que um dia nem mesmo as desculpas seriam mais necessárias.

Temendo que o ônibus passasse e ele desistisse da ideia de ficar em casa ao menos aquele dia, dar uma desculpa no emprego seja ele qual fosse, Felipe se levantou ainda meio tonto, a cabeça menos latejante, e foi caminhando, agora oposto aos que também tinham seus compromissos, todos eles agora olhando em sua direção, talvez porque sua aparência estivesse horrível, talvez porque soubessem que agora ele já não tinha sombra ou reflexo, ou quem sabe porque, ignorantes da sua condição, o estivessem julgando mal, ele não era melhor do que ninguém, com que direito tomava a direção contrária a das obrigações?

Mas enquanto caminhava, como um solução que entrecorta a respiração tranquila, pensou em Sandra. Muito melhor que a solidão daquela casa, que aquele colchão ortopédico caríssimo, que a ideia de permanecer horas sob o chuveiro e dias sobre aquela cama seria dar a meia volta, passar pelo ponto de ônibus e por todas aquelas pessoas que pareciam julgá-lo e tocar a campanhia de Sandra, que morava a alguns quarteirões dali. Se havia alguém no mundo com quem ele pudesse contar, era ela. Que ao seu lado diante do espelho, ao ver apenas o seu reflexo, não o chamaria de louco como supunha que faria qualquer outra pessoa- porque são incompreensíveis as coisas que afligem o outro-. Que jamais esperou ouvir de sua boca nada além daquilo que tinha vontade de dizer, por mais que raras fossem as vezes em que havia necessidade de alguma coisa ser dita. Se encontravam com a mesma frequência com que certos fenômenos naturais aconteciam, mas nem mesmo o tempo que se passava entre um acontecimento e outro ofuscava a beleza do acontecer.

Decidido, na ilusão de que de repente se a encontrasse todos aqueles problemas fossem desaparecer, de que ao se olharem nos olhos, ao se tocarem, e se dizerem as poucas palavras e nenhuma delas obrigatórias ou esperadas, seu reflexo e sua sombra lhe fossem devolvidas, deu meia volta, e bem quando ia passando pelo ponto de ônibus e toda aquela gente, uns que pareciam não ter despertado por completo, outros tão jovens e com aquele ar de quem carregava o peso do mundo- o ônibus chegou. Então Felipe se deteve, ficou ali parado com a sensação de que todos aqueles olhos metralhavam reprovações em suas costas, de que o mundo de repente emudeceu, apenas as máquinas continuavam com seus ruídos de ofício. Já não mais pensava em Sandra, em seu reflexo no espelho ou sua sombra, porque no mundo em que havia aprendido a viver as obrigações, o trabalho e o sacrifício, mais do que qualquer coisa no mundo, eram importantes, eram os tijolos e o cimento para a edificação do homem.

Envergonhado, deu meia volta mais uma vez e se juntou à fila que se formou ao lado do ônibus que os esperava, o motorista enxugando a testa com uma toalha de rosto que algum dia havia sido branca, olhando-se no espelho como se também tivesse perdido o seu reflexo e não acreditasse no que não via. Felipe foi o último a subir, todos agora tagarelavam contentes como uma máquina que volta a funcionar depois de um ajuste, da reposição de uma peça que faltava, alguns dormiam como se pudessem ver o final do sonho interrompido, outros apenas olhavam fixos para a cabeça do acento da frente- talvez sonhassem acordados.

Felipe, sentado nos fundos, agora só pensava nas papeladas que já o esperavam sobre a mesa, e enquanto o ônibus seguia pela avenidade, enquanto ele ficava cada vez mais próximo de seu trabalho e mais distante de Sandra e sua casa, foi se sentindo cada vez mais leve. Uma leveza que jamais havia experimentado na vida; uma leveza de quem não tem reflexo nem sombra ou sequer um corpo, e foi quando então, para constatar de que ao menos o corpo havia lhe restado, percebeu que o seu terno foi ficando cada vez mais frouxo como se o seu corpo estivesse afinando, e de repente era como se flutuasse, e depois teve certeza que flutuava porque via de cima toda aquela gente dentro ônibus, o seu terno vazio caído diante do seu acento, então ele já não estava mais no ônibus e pode vê-lo seguir pela avenida, e foi se sentindo cada vez mais leve e mais alto até que então, já muito longe, pode ver a cidade inteira, e além da cidade, a cidade vizinha, e as cidades, e foi subindo, subindo, subindo, até que atingiu a atmosfera, e viu o planeta azul. E viu que da terra bolhas como as de sabão que ele soprava com canudo de mamoeiro se elevavam, e de repente podia ouvir essas bolhas e entender que elas eram nada mais que ideias, ideias que se perdiam e estouravam no espaço como as bolhas de sabão da sua infância.

Então, antes de também estourar e desaparecer como aquelas bolhas que ele soprava com canudo de mamoeiro, percebeu que ele também havia se tornado uma ideia, apenas mais uma coisa dentre tantas coisas que se perdiam no mundo.

Dezessete de março – René Gaertner

Dizer “árbol”. E dizer “heureusement”, “wanderlust”, “la bière”. Não se trata de algo como que ser poliglota. Dizer todas as palavras que possíveis em silêncio. Sempre. Dizer “nenhum”. Quando eu cheguei aqui sem sapatos sentindo a areia na sola dos pés aprendi uma língua de ninguém. Que dispersão a minha. Eu moraria em cada folha da palavra “árbol” se pudesse sair daqui. Como toda a criança inventando sentidos absurdos para as palavras. Palavras só minhas.
Achava feio as nonas falando “tortei”, “ma que”, um pouco grosseiro talvez, fora quando faziam aquela voz que ia se tornando aguda até atravessar meus ouvidos por completo. Aqui silêncio de sílabas e tudo. Uma época quis aprender Tupi, só quis, achava uma língua impossível, mas quis, porque quis também todas as coisas da terra e segredos, achava que isso era tão Tupi. Tolices de quem tem desejos assim tão distantes. Eu nunca aprendi uma palavra, nem mesmo “olá”. Acredito que os índios não dizem “olá”, não como eu que nunca fui, não como todas as pessoas que dizem. Se eu tivesse que dizer “olá”, diria sem pensar em nada: “árbol”. E moraria lá pra sempre.